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Brasil, império do bisturi

Publicado em 15/01/2009

Os dados são fresquinhos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o brasileiro se tornou o povo que mais faz plástica no mundo. No ano passado, 350.000 pessoas se submeteram a pelo menos um procedimento cirúrgico com finalidade estética. Fazendo as contas, isso significa que, em cada grupo de 100.000 habitantes, 207 pessoas foram operadas em 2000. Os Estados Unidos, tradicionais líderes do ranking, registraram 185 operados por 100.000 habitantes no ano 2000. Nos países europeus, como Inglaterra e Alemanha, a média foi de quarenta pacientes operados por 100.000 habitantes – um quinto da brasileira. O cálculo se refere apenas às cirurgias de caráter estético. Não inclui, portanto, as operações de natureza reparadora, necessárias por defeitos congênitos ou acidentes.

À primeira vista impressiona imaginar o Brasil, um país em desenvolvimento, tomando dos Estados Unidos o posto de o primeiro do mundo num campo que envolve gastos elevados, como a cirurgia plástica. Ainda mais quando se considera que a renda per capita americana é oito vezes maior que a nossa. Embora os preços cobrados pelos médicos no Brasil sejam em média um terço dos praticados nos Estados Unidos e uma parte razoável da população brasileira esteja no lado belga do país, os especialistas entendem que a explicação central para o fenômeno não reside propriamente no universo da economia. Na opinião dos profissionais do ramo, acerta mais quem procurar a resposta na esfera do comportamento. "Nos países europeus não se vê um esforço das mulheres de 40 querendo parecer ter 30", diz o cirurgião paulista Fabio Carramaschi, 44 anos. "No Brasil, sim." Seu consultório é a prova do que diz. Só nos últimos cinco anos a clientela quadruplicou.

Os cirurgiões plásticos dividem seus pacientes em três principais grupos, por ordem de grandeza. O maior deles é formado pelos que recorrem à plástica como forma de lutar contra o inevitável processo de envelhecimento. O segundo grande grupo reúne aqueles pacientes cujas imperfeições físicas provocam tamanho desgaste psicológico que a minimização ou a eliminação do problema é mais do que bem-vinda. É quase necessária. O terceiro grupo possui perfil mais ousado. Ele abriga aqueles cuja meta é esculpir um corpo de parar o comércio. Essa classificação dos pacientes se refere a cirurgias estéticas e é semelhante em todas as partes do mundo, incluindo o Brasil. O que torna o país especial nessa área é o ímpeto com que as pessoas decidem operar-se e a rapidez com que a decisão é tomada.

Para se ter uma idéia desse destemor nacional, quando se pergunta a um americano ou a um europeu qual é seu maior receio durante a cirurgia, a resposta é: a anestesia. Nas pesquisas sobre o assunto, eles se dizem apavorados com a possibilidade de se internarem em razão de um problemazinho estético e acabarem com um problemão de saúde. Um choque anafilático, talvez. Já os brasileiros têm outra preocupação na cabeça. O que mais os apavora é a chance de o resultado final não ficar bom. Riscos ligados à anestesia ficam em segundo plano. "De fato, operar-se é uma decisão que o brasileiro toma com mais facilidade do que outros povos", diz José Horácio Aboudib, renomado cirurgião plástico carioca que já operou beldades como Vera Fischer e Paula Toller.

Até o início da década passada, a plástica no Brasil era tida como um item de consumo fútil, um capricho próprio das dondocas. Não passava pela cabeça de uma mulher de classe média reconstituir as curvas de seu corpo ou modificar os traços de seu rosto. Hoje a mulher que mais procura as clínicas trabalha fora, paga a plástica em prestações e integra uma família com renda média mensal de 3.000 reais. Os estudos mostram que quem gosta do resultado da cirurgia muitas vezes volta uma segunda vez. Atualmente, recorrer à faca para aumentar ou diminuir os seios, sugar a gordurinha a mais nos quadris e no abdome, enxertar silicone na panturrilha e nos ombros ou redesenhar a linha do nariz é algo tão difundido que já integra a lista dos traços da personalidade do país. No imaginário das pessoas, a cirurgia virou uma coisa simples, quase banal. É como se a clínica Santé, onde se internam os artistas da televisão, fosse uma espécie de spa, no qual o paciente se hospeda para descansar e perder uns quilinhos. Em 1990, apenas 60.000 pessoas submeteram-se a esse tipo de cirurgia – padrão europeu. Desde então, a procura pela plástica aumentou 580%. Há estudos mostrando que um quinto das operações não precisaria ser feito e elas poderiam ser substituídas pela velha combinação dieta-ginástica.

Os dados apontam para um aumento quantitativo e uma transformação qualitativa. Cada vez mais seguras, rápidas e baratas, as cirurgias estão atraindo uma clientela jovem. Assim como os adultos, os adolescentes brasileiros também passaram a se operar como em nenhum outro lugar do mundo. De cada 100 pessoas que se submetem à cirurgia plástica com finalidade estética nos Estados Unidos, duas são adolescentes. No Brasil, a clientela com menos de 18 anos chega a 13% do total de pacientes – sete vezes mais. Até cinco anos atrás, os homens representavam 5% do total de operados. Agora são 30%. Esse aumento na procura acabou por produzir um agito de igual proporção no meio médico.

O país nunca teve tantos plásticos. Proporcionalmente, há tantos médicos em atividade no Brasil quanto nos Estados Unidos. Mas, quando o assunto é pós-graduação, o Brasil ganha novamente. Há mais médicos fazendo uma especialização em plástica no Brasil do que nos Estados Unidos. De acordo com os dados, são 450 pós-graduandos na área no Brasil contra 400 nos Estados Unidos. O mais famoso cirurgião plástico do país, Ivo Pitanguy, mantém um curso de pós-graduação que atrai alunos de toda parte do mundo. Lá, 30% dos estudantes são estrangeiros. Outra mudança notável nesse campo é que o número de queixas contra os plásticos caiu. De acordo com os dados do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – onde se concentra a maioria dos cirurgiões do país –, o total de queixas caiu nos últimos anos.

O crescimento da plástica no Brasil, que é um fenômeno em si, gerou outro fenômeno. Nos diversos ramos da medicina, é possível citar um ou outro brasileiro de notoriedade internacional. A comunidade científica sabe quem é o cardiologista Adib Jatene ou o urologista Sami Arap. Mas na cirurgia plástica o Brasil virou referência como conjunto – não por ter este ou aquele nome isoladamente, e sim por possuir um time enorme de profissionais competentes, que comparecem em peso aos congressos internacionais e são convidados a falar de seu trabalho.

Nos últimos anos, o Brasil produziu uma nova geração de cirurgiões plásticos de primeira linha que estão repetindo a trajetória de Pitanguy. Alguns deles têm agenda lotada nos próximos quatro meses, outros cobram 20 000 reais por uma plástica no rosto. Em comum, conseguiram amealhar um patrimônio de padrão semelhante ao de quem é bem-sucedido no mercado financeiro. Não são apenas veteranos, como Farid Hakme, 61 anos, do Rio de Janeiro, dono da maior clínica de cirurgia plástica da América Latina, que fechou o ano com um recorde: 240 pares de próteses colocadas. Há médicos de todas as idades, espalhados pelos grandes centros, e os mais notáveis já costumam ser associados a partes do corpo humano. Na comunidade dos plásticos, já se dizem coisas como "a mama do Sampaio Góes", "o rosto do Pedro Vital" e o "nariz do Volney Pitombo".

Quando se fala de plástica de mama no país, é impossível não citar o cirurgião paulista João Carlos Sampaio Góes. Aos 52 anos, divide seu tempo entre a presidência do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer e seu consultório. Também é um dos cirurgiões mais caros do Brasil. Faz cerca de cinqüenta cirurgias por mês, pelas quais cobra 15.000 reais, em média, cada uma. Góes tornou-se conhecido entre os especialistas por sua técnica de reconstrução de mama usando gordura do abdome. Um craque na cirurgia de face é outro paulista, Pedro Vital, 59 anos. Sua especialidade é uma técnica de resultado duradouro. Em vez de repuxar a pele, o médico faz o trabalho reparador no músculo. Em sua clínica, consultas só para daqui a quatro meses. Vital foge de artistas. "Eles não pagam. Querem sempre de graça", diz.

Rosto, seios, barriga, nariz. As cirurgias são tão diferentes que a especialização parece ser inevitável. Um dos melhores cirurgiões na dificílima operação para correção de orelha de abano é o mineiro Juarez Avelar, 56 anos. Com consultório em São Paulo, ele chega a fazer setenta intervenções por mês. É de sua autoria um dos mais detalhados livros sobre plástica de orelha publicados em todo o mundo. Outra unanimidade é o cirurgião Volney Pitombo, 51 anos, um baiano estabelecido no Rio de Janeiro. É ele o responsável pelo novo perfil da atriz Débora Bloch. Nariguda de nascença, operou-se e ostenta o que os médicos garantem ser o perfil ideal. De cada cinco consultas que Pitombo faz, três são operações no nariz – para as quais cobra 10 000 reais. "É a parte do corpo em que o cirurgião pode mostrar sua arte: ou fica um desastre ou uma obra de Michelangelo", diz.

O desempenho profissional dos médicos de alto gabarito é discutido nos congressos e também nas festas dos colunáveis. Algo semelhante ao que já acontece nos Estados Unidos há vários anos. O nova-iorquino Daniel Baker, que tem agenda lotada para os próximos treze meses, já foi citado pela New York Times Magazine como o "assunto principal do restaurante Le Cirque à Sotheby's", ou seja, onde circulam os famosos e ricaços. Seu colega, Sherrell Aston, que também tem endereço na famosa Park Avenue, cobra 25.000 dólares por uma plástica de rosto. E Thomas Rees, o papa da lipo em Nova York, desfruta a vida como milionário com casas espalhadas mundo afora. Em países da Europa e do Oriente essa festa não se repete. Ali a cirurgia é quase sempre reparadora. "O boom da plástica se concentrou mesmo nas Américas", diz o concorrido cirurgião Paulo Müller, 43 anos, ex-genro de Pitanguy e queridinho das locomotivas do Rio de Janeiro. A atriz Danielle Winits e a socialite Narcisa Tamborindeguy são algumas delas.

Como todos os demais ramos da cirurgia, a plástica depende da tecnologia como forma de permitir que as operações fiquem cada vez mais seguras. Diferentemente deles, no entanto, a plástica avança também segundo as influências da moda. Nos anos 60, as mulheres queriam possuir uma boca carnuda como a da atriz francesa Brigitte Bardot. O procedimento de aumentar os lábios ganhou o nome de "bardotização". Nos anos 70, no Brasil, faziam sucesso os seios pequenos de Sonia Braga. A atriz Bo Derek provocou uma corrida às clínicas. Eram mulheres querendo copiar o seu nariz arrebitado e pequeno. A barriga de Madonna e os seios fartos de Luma de Oliveira também serviram de referência. Há dez anos, de cada dez cirurgias de mama realizadas no país, seis eram de redução, três para levantar e apenas uma para aumentar os seios. Hoje, cinco levantam, três aumentam e só duas reduzem. Provavelmente, pode-se chamar essa mudança de "efeito Gisele Bündchen".

Mas, atenção, não há milagre. "A paciente entra aqui com a idéia de um seio, mas sai com o seio que a medicina é capaz de fazer", afirma o cirurgião fluminense Ronaldo Pontes, 65 anos. Com cerca de 16.000 operações no currículo, Pontes mantém uma clínica com 22 leitos que emprega sessenta funcionários. Ele é o responsável pelo visual de atrizes como Renata So outras mulheres dispostas a pagar cerca de 8.000 dólares por uma esticadinha na pele do rosto.

É comum que certos cirurgiões prometam resultados que não vão poder apresentar. É também freqüente entre os profissionais menos qualificados uma atitude imprudente de não prevenir o paciente sobre os riscos que ele corre. "Dizer que não vai ficar cicatriz, que uma pessoa mais velha vai ficar vinte anos mais nova, isso tudo é mentir para o paciente", afirma o médico paulista Ithamar Stocchero, que recentemente operou a empresária Eliana Tranchesi, dona da Daslu, a butique mais chique do país. "Nós precisamos mostrar claramente que a obesa que faz lipo nunca vai ficar como a Luana Piovani", explica Sampaio Góes. Bom seria se todos os cirurgiões se comportassem assim. Infelizmente, atua no mercado um grupo cuja conduta ética é para lá de questionável. São profissionais capazes de divulgar suas habilidades em anúncios de jornais e revistas, como se suas operações fossem um produto de lojas de eletrodomésticos. Quem é sério não faz. Só no Brasil, dizem os médicos, há uma política de oferecer pacotes com pagamento de prestações, cheques pré-datados e até mesmo consórcios. "Médico não deveria ser mercantilista nunca", diz Regina Carvalho, do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Mas que os há, os há.

Fonte: http://veja.abril.com.br/170101/p_084.html

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