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Conserte a natureza com cirurgia plástica

Publicado em 26/01/2009

O cirurgião plástico Ivo Pitanguy, 63 anos, tem quase tanto nome no exterior quanto Pelé. O atleta do século exibe sua intimidade com a desinibição dos estádios. Pitanguy esconde sua vida particular com o cuidado que dispensa à assepsia de um campo cirúrgico. Diverte-se surpreendendo os que se julgam seus íntimos. Há alguns anos, convidou alguns conhecidos para uma palestra que faria para médicos estrangeiros. Falou em alemão. Ele é capaz de interromper uma conversa séria com colegas para brindar uma mulher bonita com um elogio que beira o galanteio. Nove entre dez amigos juram que ele adora a badalação que se arma no Carnaval do Rio de Janeiro, onde mora há 44 anos, desde que saiu de Minas Gerais, sua terra natal, acompanhando uma geração de migrantes ilustres, como o escritor Fernando Sabino. O Carnaval do ano passado, Pitanguy passou em Nova York cumprindo um rigoroso programa cultural que inclui a peça M. Buterfly, na Broadway.

Lutador de caratê, mergulhador, jogador de tênis, atividades a que se entrega com o esmero de um profissional e que tomam seu tempo quando não está na famosa clínica da Rua Dona Mariana, em Botafogo, ou na 38ª. Enfermaria da Santa Casa. Na enfermaria, ele opera de graça. Na clínica, uma operação plástica pode custar 30.000 dólares. Ele opera em geral de manhã. À tarde, atende visitantes estrangeiros na clínica, em conversas que costumam ser regadas generosamente a uísque. Casado, pai de quatro filhos, Pitanguy confirmou sua vocação de cirurgião plástico quando, plantonista em 1961, atendeu as crianças duramente atingidas pelo fogo no famoso incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói. Pelo seu bisturi passaram atrizes suficientes para filmar uma superprodução de Hollywood. Gina Lollobrigida, Marisa Berenson, Ursula Andress. Operou várias vezes Tônia Carrero e Martha Rocha e tomou-se amigo, nos anos 70, de uma cliente famosa e então dona de muito poder, a ex-imperatriz do Irã Farah Diba.

Durante dez horas, divididas em três sessões, a editora-assistente Sonia Biondo, da sucursal do Rio de Janeiro, fustigou o médico com perguntas. Dez horas são uma eternidade na vida corrida de Pitanguy - só no ano passado ele fez 87 conferências no exterior - e tempo suficiente para ele operar cinco pacientes. Pitanguy falou a VEJA sobre seus trinta anos de cirurgia plástica, o futuro dessa especialidade, suas conquistas médicas pessoais. Ele submeteu-se à sabatina com modos gentis, mas uma das sessões chegou a ser interrompida depois da pergunta "Quanto o senhor cobra por uma operação?"

VEJA - Quanto o senhor cobra por uma operação?
PITANGUY - Nunca deixei de operar alguém que precisasse da cirurgia e não pudesse pagar.

VEJA - O senhor tem mais simpatia pelas pessoas que o procuram para fazer uma cirurgia reparadora do que pelas que desejam apenas livrar-se de um pequeno problema estético no nariz?
PITANGUY - Em absoluto. Encaro a cirurgia plástica no seu sentido amplo. Viso ao bem-estar do indivíduo em todos os casos. E muitas vezes esse bem-estar está relacionado com sua própria imagem. É um respeito ao julgamento íntimo de cada um. O desequilíbrio interior que uma queimadura séria acarreta pode ser o mesmo de alguém que se sente angustiado por considerar seu nariz feio ou grande demais. Os méritos de um cirurgião que trata com eficiência a queimadura são os mesmos do que aborda com sucesso e resolve o problema do nariz.

VEJA - Os defeitos na própria face parecem mais aparentes do que no rosto dos outros, não é mesmo?
PITANGUY - Exatamente. Mesmo um pequeno defeito pode ser terrível para quem o apresenta. Isso também está diretamente relacionado à evolução recente da cirurgia plástica. Hoje, um psicanalista ou um psiquiatra é capaz de olhar a especialidade sem reservas, como um elemento a mais que pode ajudar a trazer harmonia, prazer e bem-estar ao ser humano. Em alguns casos, a cirurgia plástica é um atalho para a harmonia interior. Isso depende muito também da psicologia do indivíduo, de como ele se sente e se enxerga e de como essa imagem o afeta.

VEJA - Na semana passada os pneumonologistas podiam comemorar o fato de ter sido testado pela primeira vez nos Estados Unidos um pulmão artificial. Os cirurgiões do coração já fazem transplantes de maneira rotineira. Em termos de recursos técnicos, o que existe de mais novo atualmente à disposição do cirurgião plástico?
PITANGUY - Em cirurgia plástica, os avanços se processam de maneira menos espetacular do ponto de vista tecnológico. As inovações, em geral, são engenhosas, são achados inteligentes, mas bastante simples. O que mais nos anima atualmente, especialmente no tratamento de certas seqüelas de queimaduras, são os expansores de tecido. Eles funcionam de maneira orgânica e altamente eficiente. Com seu uso conseguimos distender o tecido vizinho da área afetada de modo a dar ao cirurgião pele extra com que trabalhar. O cirurgião implanta na região vizinha da queimadura um balão que a cada semana vai sendo enfiado com soro. O balão aumenta de tamanho e a pele sadia tende a cobri-lo, produzindo o excedente de tecido com que o cirurgião poderá trabalhar.

VEJA - Em que cirurgias específicas o senhor utiliza os expansores?
PITANGUY - Posso usá-los, por exemplo, para remover cicatrizes de tatuagens e até para corrigir as seqüelas de um tumor. Ao criar pele adicional, o cirurgião remove o que deseja remover sem precisar de enxerto. Essa é uma vantagem única.

VEJA - O senhor diria que os expansores significam com hoje o que a lipoaspiração significou há alguns anos?
PITANGUY - Não exatamente. No conjunto das técnicas, eles são apenas mais uma e tão útil quanto a lipoaspiração. Essa técnica, aliás, continua sendo a mais indicada nos casos de correção de gorduras localizadas. O que acontece é que, muitas vezes, quando ainda era novidade recente, a lipoaspiração passou a ser encarada erroneamente como uma panacéia. Uma solução para todos os problemas estéticos. Ela, quando utilizada corretamente, resulta em formidáveis benefícios - exatamente como os expansores.

VEJA - A cirurgia plástica também evoluiu no que diz respeito ao conhecimento das motivações do paciente?
PITANGUY - Sem dúvida. É preciso muita sensibilidade nesse contato com o paciente para sabermos o que ele espera do cirurgião. O papel do cirurgião plástico é, convenhamos, bem diferente daquele do cirurgião que vai tratar um caso de apendicite aguda. Nesse caso, o arbítrio é todo de quem opera. Cabe ao médico salvar a vida do paciente retirando o apêndice. Diante do paciente de cirurgia plástica, é preciso um enorme esforço para se entender o que o paciente espera e o que, efetivamente, é possível lhe dar. Por isso é que digo que nós, cirurgiões plásticos, levamos nossa especialidade neste final de século a um momento de maturidade. Evoluímos muito em nossas técnicas, mas mais ainda em situar nossos pacientes a respeito do que a cirurgia plástica pode oferecer.

VEJA - O paciente também evoluiu nessa direção?
PITANGUY - Sim, na medida em que ele se informa de maneira geral pela imprensa ou pela leitura de publicações especializadas. Mesmo os que nos procuram esperando milagres sabem, no fundo, que a cirurgia plástica não é mágica, deixou de ser um sonho. E isso é bom.

VEJA - O paciente que é informado realisticamente de suas possibilidades reage melhor a um eventual fracasso?
PITANGUY - Sim, é claro. Mas não temos o direito de macular a ilusão humana, mesmo porque o problema que não pode ser resolvido com as técnicas atuais certamente poderá ser abordado no fututo. O tempo é um aliado do médico e do paciente, e todos podemos, então, encarar a mais feia realidade com otimismo. E as novas técnicas não param de ser conquistadas.

VEJA - Graças principalmente ao senhor, a cirurgia plástica brasileira desfruta no exterior uma reputação inigualável e dá ao brasileiro leigo a sensação de que, nesse particular, o país é mesmo campeão do mundo. Isso é verdade?
PITANGUY - Eu diria que a cirurgia plástica brasileira se iguala à dos países mais avançados do mundo. Diria que soubemos com muito esforço nos manter atualizados, trazendo para nossa equipe especialistas da cirurgia geral, cuja utilidade antes nem imaginávamos. Trouxemos para a cirurgia plástica os microcirugiões e os especialistas em cirurgia de mãos, por exemplo. Isso enriqueceu nosso campo e o tornou ainda mais complexo. Eu, pessoalmente, já me senti como os sábios da Antigüidade, que eram donos de todo o conhecimento disponível. Não me sinto mais assim. Estou sempre me atualizando e me fazendo rodear de pessoas que têm amor ao ensino, à difusão do conhecimento e compromisso com o avanço acadêmico.

VEJA - No instante de reconstruir um rosto ou de realizar uma cirurgia embelezadora, o que mais o inspira?
PITANGUY - Na hora exata, nada. Não posso utilizar padrões artísticos de beleza para adaptá-los a quem quer que seja. Isso é impossível. As belas formas das estátuas gregas, por exemplo, só foram geradas daquele jeito porque refletiam a estética da época. Não há como reproduzi-las ou recriá-las nos dias atuais. Pessoalmente, no entanto, posso dizer que tenho uma queda especial pela obra de Leonardo Da Vinci, no que se refere ao movimento, e pela de Michelangelo, no que se refere à forma. Infelizmente, em termos de cirurgia plástica temos limitações que esses artistas não tiveram ao criar formas humanas. O cirurgião está inexoravelmente preso à ortodoxia das linhas. E não se deve esquecer que dentro de cada pessoa existe uma alma que inspira mudanças que se quer promover nessa forma exterior.

VEJA - O senhor acredita em Deus?
PITANGUI - Creio em Deus. Não crer em Deus é auto-suficiência exagerada. Creio no bem-estar, na harmonia e na beleza.

VEJA- Qual é sua definição de beleza?
PITANGUY - Há muitas maneiras de defini-la. Já li muito sobre ela e ouvi muitas definições em toda a minha vida, mas uma é especialmente feliz: é algo que sempre que encontramos sabemos identificar. Muitos filósofos e artistas, ao longo da História da humanidade, tentaram falar sobre beleza mas não ousaram nenhuma afirmação mais definitiva. Nem Baudelaire, que escreveu algo belíssimo a respeito, dizendo que "ela reina sobre o azul como uma esfinge desconhecida", não se daria satisfeito totalmente com essa definição. A beleza universal, como Baudelaire observou, é mesmo uma esfinge indecifrável. Ao vê-la, sabemos que algo mais está presente, embora não possamos traduzi-lo pela harmonia das formas exteriores.

VEJA - Já que a beleza é de difícil definição, pode-se afirmar que todas as pessoas belas teriam em comum um perfil psicológico semelhante?
PITANGUY - Seria presunçoso da minha parte traçar esse perfil psicológico. Eu diria que lido com pessoas belas e com pessoas belas que se julgam menos belas. É comum eu ser consultado por pessoas que são absolutamente perfeitas e não se vêem como são por algum motivo. Isso é conseqüência da ênfase exagerada que a sociedade dá à imagem. Acredito que, daqui para a frente, deixaremos de lado o narcisismo e que passaremos a cultivar as virtudes do indivíduo como um todo.

VEJA - A beleza perderia, então, seu status de virtude maior?
PITANGUY - Ela continuará sendo o mais importante instrumento de força e poder utilizado pelo homem. Isso sempre que for resultante de um equilíbrio entre o estado morfológico e o estado anímico, isto é, forma e conteúdo. Sempre que existir somente a vaidade sem a convicção da própria beleza, a força resultante, ao contrário, será destrutiva.

VEJA - E de que forma a cirurgia plástica poderá contribuir, num futuro próximo, nessa busca pela beleza?
PITANGUY - Difícil falar nos progressos da cirurgia plástica sem falar nas conquistas recentes da imunologia ou da engenharia genética. Essas especialidades, sim, irão definir se, a exemplo de tantos filmes de ficção científica, iremos criar novos seres humanos, combinando, através de cirurgia, numa mesma pessoa, as formas ideais desejadas. No campo da cirurgia plástica, dependeremos de um avanço global da cirurgia geral e de todas as suas subespecialidades. Principalmente no que se refere ao pouco que ainda sabemos sobre a pele humana. Não há qualquer possibilidade, por enquanto, de recriar a pele, como nós a conhecemos.

VEJA - Quais são as limitações impostas pela pele ao avanço da cirurgia plástica?
PITANGUY - Até agora, só recriamos amostras de pele para sua utilização como espécies de curativo biológico - no caso, por exemplo, de se querer evitar que a pessoa perca substância ou líquidos através de uma lesão.

VEJA - O que mais pode ser feito?
PITANGUY - A dificuldade não está no que se pode fazer, e sim naquilo que deve ser feito. Só o domínio da técnica não será suficiente. A Ética - em seu sentido amplo, que dispõe sobre o comportamento humano - será fundamental para determinar até que ponto se pode avançar. Sinto nitidamente, ao mesmo tempo, que todas as ousadias tecnológicas presentes no livro "A Terceira Onda", de Alvin Toffler, são cada vez mais palpáveis.

VEJA - Que tipo mais comum de agressão resulta em problemas que precisem ser sanados por cirurgia plástica?
PITANGUY - Assusta-me muito constatar que grande parte dos clientes que atendo por dia tenha as mais diferentes seqüelas causadas por acidentes de automóvel. E um fato: vivemos a época do trauma.

VEJA - Esse seria um fenômeno brasileiro?
PITANGUY - Certamente não. O número de pessoas em tráfego por dia é enorme e não existe nada mais traumático que o transporte do homem moderno. Cada vez que entramos dentro de um carro estamos viajando num verdadeiro bólido. Pessoalmente, morro de medo de andar de automóvel. Outro dia, quando o carro em que eu viajava no Rio foi fechado por um caminhão, lembrei-me imediatamente de uma cirurgia de nariz que havia feito naquela manhã: a moça em questão havia ficado paralítica por causa de um desastre - semelhante a esse que quase acontecera comigo - no trânsito. Impossível não sentir medo de andar de automóvel nos dias de hoje. Temo por mim, pela minha família, pelos meus filhos.

VEJA - Estatisticamente, o que isso significa para a cirurgia plástica no Brasil?
PITANGUY - Significa que 40% a 50% das cirurgias plásticas são feitas para minorar ou reparar acidentes traumáticos, como seqüelas de queimaduras ou de acidentes de carro.

VEJA - Esse número aproximado corresponde a um aumento significativo nos últimos tempos?
PITANGUY - Não tenho estatísticas precisas, seria leviano afirmar, mas penso que sim. E o motivo dos acidentes é quase sempre o cansaço, em geral aliado à bebida. Sem falar em drogas, é claro.

VEJA - Em relação á cirurgia plástica embelezadora, o que o acompanhamento das motivações da mulher brasileira para essas cirurgias lhe permite tirar como conclusão?
PITANGUY - Nesses trinta anos de convivência com clientes brasileiras dos mais diferentes lugares e regiões, é curioso constatar que há uma qualidade comum a todas elas, que é a graça e a alegria - não de viver - mas de estar viva. Fico surpreso, muitas vezes, ao descobrir, entre tantos rostos, uma face que sorri jovem numa pessoa idosa. Essa é uma qualidade típica da brasileira.

VEJA - O sociólogo Gilberto Freyre disse, certa vez, que duas mulheres sintetizavam o biotipo da mulher brasileira, resultado de tão rica mistura de raças: Vera Fischer e Sonia Braga. O senhor concorda?
PITANGUY - Acho que ambas representam muito bem a beleza universal, com a diferença que Sonia é universal de uma maneira mais brasileira. Há um outro nome, porém, que não se pode esquecer como exemplo de mulher bonita. É a Tônia Carrero.

Fonte: Revista Veja
Edição de aniversário
24 de setembro de 2003
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