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Bisturi popular

Publicado em 23/12/2008

O mais badalado consultório de cirurgia plástica do Brasil fica em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Consta que nele Ivo Pitanguy, um dos mais conhecidos cirurgiões plásticos do mundo, já utilizou o bisturi para embelezar uma lista de personalidades, como Jacqueline Onassis, Sophia Loren e Ursula Andress. Uma vez por semana, no entanto, Pitanguy deixa a sala e os jardins da clínica em Botafogo e se dirige para outro endereço – 0 38º enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, no centro do Rio, onde uma outra lista de pessoas também está à sua espera. Na Santa Casa os clientes são anônimos, grande parte deles sofre de deformidades graves, e, na maioria dos casos, Pitanguy e sua equipe não cobram nem um tostão pelo atendimento.
A equipe da enfermaria, fundada pelo próprio Pitanguy em 1960, tem dezesseis cirurgiões que, apesar de ter seus consultórios particulares, dedicam dois ou três dias na semana para atender à população carente. "Os médicos se sentem bem em trabalhar na enfermaria, estão aprendendo e servindo à sociedade", diz Ivo Pitanguy. A enfermaria da Santa Casa faz parte do curso de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica e do Instituto Carlos Chagas e já formou 277 cirurgiões. Entre os quarenta alunos que atualmente fazem o curso de especialização, 21 são estrangeiros. Eles chegam ao Brasil atraídos pela fama dos trabalhos desenvolvidos com a população carente, sob a supervisão do mestre Pitanguy. Os jovens cirurgiões só começam a operar no terceiro e último ano do curso. O grego Kikos Papoudos, de 29 anos, ouviu falar do curso quando estava terminando a faculdade de Medicina Panepistinio, em Atenas. "A pós-graduação da Santa Casa é conhecida no mundo todo", diz ele. "Poderia ter ido estudar na Inglaterra. Mas lá o curso é muito específico. Aqui aprendo de tudo".

ORELHAS DE ABANO
A 38º enfermaria tem catorze salas de atendimento, um centro cirúrgico com quatro mesas de operação e três enfermarias, com cinco leitos cada uma. Os pacientes chegam de todas as partes do país. Ivy Machado da Costa, 16 anos, tem vergonha de suas orelhas de abano e esperou oito meses para se submeter a uma cirurgia reparadora na Santa Casa. Nesse tempo, ela e sua mãe, a comerciante Roseli Machado de Melo, saíram cinco vezes de Caxambu, Minas Gerais, onde moram, para fazer exames no Rio. Voltavam para casa no mesmo dia, enfrentando dez horas de viagem de ônibus. Para a moça, o esforço valeu a pena. "Não vão mais me chamar de Dumbo na escola", diz.
Há quem enfrente viagens ainda mais longas pela rara oportunidade de receber, de graça, um serviço médico de qualidade. Maria das Mercês Souza, 63 anos, com paralisia facial, saiu há sete meses da Serra da Guité, interior da Paraíba, para fazer um tratamento na Santa Casa. Ela já se submeteu a duas cirurgias e agora está se preparando para uma terceira.Viúva e mãe de dez filhos, Maria das Mercês jamais poderia pagar pelo tratamento numa clínica particular. Ela vive apenas com uma pensão de 5 000 cruzeiros que recebe do Funrural. Nem todos os pacientes que procuram a enfermaria têm uma situação tão difícil. "Nosso serviço na enfermaria é um retrato da economia do país", diz Pitanguy. "Antigamente, só atendíamos a quem não tinha nenhum tipo de assistência, casos de pobreza total. Hoje operamos até profissionais liberais", comenta.

DINHEIRO NA POUPANÇA
Na fila, esperando para ser atendido, o engenheiro civil Vítor Paulino, 49 anos, que recebe salário de 250 000 cruzeiros, procurou o serviço da Santa Casa para faze uma cirurgia na pálpebra. "Só estou aqui porque tenho INPS", diz. O tratamento só não é totalmente gratuito para os que vão à Santa Casa para corrigir defeitos puramente estéticos, como eliminar rugas e diminuir o tamanho dos seios, por exemplo. Nesse caso, o paciente paga pelo material que será usado na operação. A costureira Aída Ribeiro da Silva Monte abriu uma caderneta de poupança e, em dois anos, conseguiu economizar 70 000 cruzeiros para pagar a cirurgia para diminuir os seios. "Eles são muito grandes e, por isso, minhas costas doem", reclama. Ela e seu marido, que é pedreiro, têm, juntos, uma renda mensal de 20 000 cruzeiros. "Deixei de comprar minha televisão para fazer a operação", diz Aída. Numa clínica particular, a mesma cirurgia não sairia por menos de 500 000 cruzeiros.
O único inconveniente é que Aída, como outros pacientes inscritos para afazer cirurgias estéticas, pode ter que esperar até três anos para ser chamada. "Fazemos até 24 cirurgias por semana e cerca de 900 por ano. Temos que dar prioridade aos casos mais graves, como as seqüelas de queimaduras", explica o cirurgião Francisco e Silva Salgado, coordenador do curso da PUC. Os pacientes que vão à Santa Casa pela primeira vez são atendidos às sextas-feiras. A fila começa pouco antes das 7 da manhã. A enfermaria abre às 8, quando o cirurgião Ramil Sinder, braço direito de Pitanguy desde a inauguração da enfermaria, recebe um por um e explica aos residentes o tipo de cirurgia necessário para cada caso.
"Os casos mais tristes são os de crianças queimadas. Não consigo me acostumar", diz a enfermeira-chefe Ana Maria Mattos Nobre, de 52 anos, que trabalha há 24 anos na 38º enfermaria. Mais impressionante que as seqüelas deixadas por queimaduras é o caso de Soniairene Gugula, 33 anos, portadora de uma doença congênita rara, chamada neurofibromatose – a mesma do personagem principal do filme O Homem Elefante. Com o rosto todo deformado, em breve ela será operada pelo próprio Ivo Pitanguy, que hoje em dia só opera os casos mais graves da enfermaria. Soniairene é casada com um eletricista, tem dois filhos e mora em Irajá, subúrbio do Rio. A cirurgia não vai resolver seu problema, mas pode amenizá-lo. "Não quero mais ser olhada na rua como se tivesse vindo de outro mundo", desabafa.
São casos complicados como o de Soniairene e a possibilidade de aprender com o mestre Pitanguy, além do prestígio garantido por um estágio desse tipo, que atraem os médicos para o trabalho na enfermaria. "Aqui nós ensinamos e aprendemos muito", diz a cirurgião Wanda Elizabeth Corrêa. "Como pesquisa científica, a enfermaria é um sucesso".Segundo ela, com a recessão, os movimentos nos consultórios particulares diminuiu muito. "Em outubro, eu ganhava em torno de 3 000 dólares por mês. Hoje recebo metade", diz. Os médicos não se importam de trabalhar de graça na enfermaria. O cirurgião Ramil Sinder fez parte da primeira turma de alunos de Pitanguy na Santa Casa e trabalha há trinta anos na enfermaria. Ele tem um consultório em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro, mas não abre mão de dedicar três manhãs da semana para os atendimentos na Santa Casa. "Fui uma criança muito pobre e, hoje em dia, me sinto na obrigação de ajudar a quem precisa", justifica.

PEDIDOS DE AJUDA
Quando abriu a 38º enfermaria, em 1960, Pitanguy já trabalhava na Santa Casa no ambulatório de cirurgia plástica, com o doutor Henrique de Góes. "O serviço cresceu tanto que tive que abrir uma enfermaria só para esse atendimento", diz Pitanguy. Ele contou com recursos da própria Santa Casa, do INPS, recebeu doações de amigos e tirou dinheiro do próprio bolso para a compra de equipamentos e materiais, como acontece até hoje. No início, Pitanguy ia todos os dias à Santa Casa. "Antes, o serviço dependia muito da minha presença. Nos últimos dez anos, passou a caminhar sozinho, graças à boa equipe de médicos que existe lá".Hoje, Pitanguy dedica a manhã de quarta-feira para analisar os casos, orientar os médicos e realizar as cirurgias mais difíceis. Segundo Pitanguy, nos últimos vinte anos, a procura pela cirurgia plástica cresceu bastante. Ele recebe mensalmente em seu consultório cerca de cinqüenta cartas de pessoas pedindo a sua ajuda para fazer uma cirurgia. Todas elas são encaminhadas à 38º enfermaria. De acordo com o cirurgião Ramil Sinder, são raros os casos de pessoas que procuram a clínica em busca apenas de beleza. "Não estamos aqui só para deixar as pessoas mais bonitas. A maioria nos procura, principalmente, para se igualar aos outros e não chamar a atenção nas ruas".

Fonte: Revista Veja
20 de fevereiro de 1991
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